A professora do ensino básico Karla Bastos está pronta para começar mais um dia de aula. Além das luvas e do jaleco descartáveis, tudo o que ela precisa está dentro de uma cesta abarrotada de material escolar, com a qual circula pelas enfermarias do Instituto Fernandes Figueira, no Rio, referência nacional em pediatria para tratamento de doenças genéticas e crônicas.
Tem sido assim desde o início de agosto, quando passou a existir no instituto a chamada classe hospitalar, ou seja, atendimento pedagógico aos pacientes que, embora integrados à rede pública ou particular da educação básica, encontram-se temporária ou permanentemente afastados da escola, por causa de tratamento de saúde - seja no setor de internação, no ambulatório ou em domicílio.
Há quem se surpreenda com essa modalidade de ensino, mas ela surgiu em 1935, em Paris, por causa da
tuberculose, então uma doença fatal, e se expandiu diante dos inúmeros casos de crianças e adolescentes mutilados na Segunda Guerra Mundial.
No Brasil, o início foi em 1950, no Hospital Jesus, no Rio, hoje municipalizado. Desde então, a oferta cresceu, mas a passos muito lentos. Em 2010, diz o Ministério da Educação (MEC), foram registradas 1.279 matrículas distribuídas em 55 turmas de classe hospitalar - número irrisório, considerando que, em 2009, havia no país 6.875 estabelecimentos de saúde com internação, sendo 2.839 públicos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
É bom que se diga que a oferta desse atendimento pedagógico não é um favor, mas um dever. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, deixa claro que o poder público precisa criar formas alternativas de acesso à escola para cumprir a obrigatoriedade do ensino básico. Além disso, em 2002, a classe hospitalar tornou-se obrigatória por meio de resolução do Conselho Nacional de Educação, publicada no ano anterior.
A continuidade do processo de aprendizagem dentro do hospital, onde o paciente costuma ser submetido a procedimentos invasivos e dolorosos, ajuda na adaptação à nova rotina, facilita um retorno sem prejuízos à escola de origem e minora o isolamento social, avalia a professora Rosane Santos, do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio. Para ela, a classe hospitalar é uma "ponte com o futuro":
- Eles perguntam demais: "professora, vai ter aula hoje?". Há um interesse real. Além disso, acho que a continuidade dos estudos é um sinal para o paciente de que ele vai sair do hospital e voltar para a casa.
A aula é dada no próprio leito ou em sala adaptada
Na tarde da última quinta-feira, havia quatro alunos na sala de aula do Inca, mas uma paciente ficou indisposta e voltou para o leito. A turma, porém, logo voltou a crescer com a chegada de Ana Maria de Oliveira, de 10 anos. Portadora de leucemia, ela andou um pouco sumida por causa dos efeitos da quimioterapia, mas, em seu retorno, logo completou os exercícios dados, assim como Milena Carvalho, de 13 anos, que faz tratamento desde abril de 2010. Na turma da professora Izabel Christina, estavam ainda o elétrico Breno Albuquerque, de 6 anos, e Lucas Cocco, de 7 anos, conhecido no Inca desde 2005. Se no veterano Inca existe uma sala de aula, no Instituto Fernandes Figueira o atendimento ainda é no leito, individualizado, também por conta do estado de saúde dos pacientes. Na última quarta-feira, a professora Kátia passou boa parte da tarde na enfermaria de pediatria. É lá que Luana de Lima, 12 anos, está internada há um mês. Portadora de fibrose cística - doença genética que afeta os aparelhos digestivo e respiratório - ela logo se animou quando viu a professora. Sentou-se na cama e, após consulta à equipe médica, retirou a máscara que auxiliava a sua respiração.
No hospital é assim: ainda que o paciente queira ter aula, é preciso a permissão do médico, para não prejudicar o tratamento. Com a aula liberada, Luana, que está na 6 série do ensino fundamental, começou a ler um texto. Ela já esteve inúmeras vezes internada, mas o afastamento da escola não parece ter afetado o seu desempenho como aluna. Na semana anterior, por exemplo, ela fez lá mesmo, no hospital, as provas aplicadas em sala de aula.
- Falei com a escola e soube que ela havia tirado ótimas notas - contou Kátia.
Depois de Luana, foi a vez de Juan Oliveira, 9 anos, que parecia estar ansioso pelo aula. Portador de uma doença que causa má formação do esôfago, ele está internado há seis meses. Apesar de cursar a 1 série do ensino fundamental, Kátia logo constatou que seria necessário retroceder ao início do processo de alfabetização, pois ele não estava acompanhando o conteúdo curricular.
O vínculo entre o professor do hospital e a escola onde o aluno está matriculado, aliás, precisa ser estreito, segundo o MEC, que diz também ser competência da pasta de Educação atender à solicitação dos hospitais para o serviço de atendimento pedagógico, contratando e capacitando professores.
No Rio, por exemplo, as classes hospitalares funcionam por meio de um convênio da unidade de saúde com o Instituto Helena Antipoff, responsável pela política de educação especial do município. Segundo a diretora do órgão, Kátia Nunes, 18 professores da rede municipal de ensino estão hoje cedidos para atuar em classes hospitalares.
A oferta reduzida não é o único problema. Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a pedagoga Eneida Simões da Fonseca observa ser comum a confusão entre classe hospitalar e recreação:
- Se fica apenas no entretenimento, não é classe hospitalar. Isso não impede que, para mediar um conteúdo, seja usada uma música, um brinquedo. Mas é preciso ter clareza sobre o papel do professor. Não dá para ele entrar no hospital e virar recreador. A função dele é ensinar o conteúdo curricular - alerta ela, que está envolvida com o tema desde 1983, como professora, pesquisadora e autora de um livro sobre classe hospitalar.
Fonte: O Globo
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