quinta-feira, 18 de outubro de 2012

A história da Matemática apresentada sob um novo prisma



Professora do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IM/UFRJ), Tatiana Roque convida professores e estudantes a empreenderem uma fascinante viagem pelo pensamento matemático no livro “História da Matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas”, que acaba de ser publicado pela Editora Zahar. 

Baseada em aspectos culturais, sociais e científicos de cada período histórico analisado, a autora revela que diferentes práticas matemáticas coexistiram desde sempre, dando soluções diversas para problemas semelhantes. 

Doutora pela Coppe/UFRJ, Tatiana Roque — que foi pesquisadora do Collège International de Philosophie, em Paris (2001 a 2007) e é membro do instituto de pesquisa Archives Poincaré, em Nancy, dedicado à história da Matemática — desconstrói a tradicional visão de que a Matemática é universal, sendo matemática grega superior à de outros povos da Antiguidade, como os árabes.

Segundo a professora, especialista em historiografia da Matemática, o trabalho pretende transformar a imagem que muitos têm da disciplina — uma ciência teórica, abstrata, acessível apenas a gênios. 

Primeiro livro de história da Matemática propriamente brasileiro, escrito em linguagem objetiva e com ilustrações, “História da Matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas” aborda os sistemas matemáticos desenvolvidos desde a Mesopotâmia até o século XIX – passando pelo Egito antigo, a Grécia clássica, a Idade Média, a chamada Revolução Científica e os debates dos século XVIII. 

Quem assina o prefácio do livro é Gert Schubring, pesquisador da Universidade de Bielefeld (Alemanha), que destaca valor da obra, resultado de uma pesquisa original realizada por Tatiana Roque.

Preocupada com o ensino de Matemática, a professora da UFRJ ressalta, na entrevista, que a disciplina costuma ser rejeitada porque os programas e, portanto, os livros, em geral, não a tratam do modo adequado. Contudo, a educadora se mostra otimista com as recentes iniciativas do governo federal para aprimorar a qualidade das abordagens desta matéria no ensino fundamental. 

A senhora acaba de lançar o livro “História da Matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas”. O que a motivou a produzir esse trabalho?

Tatiana Roque - Minha motivação principal foi contribuir para transformar a imagem que as pessoas têm da Matemática, como um saber formal e abstrato, acessível a poucos. A história tradicional ajudou a construir esta visão, mas hoje existem trabalhos históricos que podem ajudar em um outro modo de considerar a Matemática. Em meus cursos de História da Matemática em níveis de graduação, pós-graduação e outros cursos voltados para professores, percebi que não havia bibliografia adequada, pois os livros disponíveis em português, a maioria livros traduzidos de obras estrangeiras, seguem uma visão ultrapassada da história, já desmentida e amplamente criticada pelas pesquisas mais recentes. Como não havia bibliografia para dar os cursos, comecei a escrever as notas de aula, que evoluíram para o livro, a fim de tornar disponível, de modo mais compreensível e didático, as pesquisas atuais, originalmente publicadas em livros ou artigos científicos escritos em outras línguas.

Quais são os mitos e lendas a respeito da Matemática contestados em seu trabalho?

A história da Matemática tradicional é permeada de mitos e lendas que, além de não terem nenhum embasamento histórico, acabam formando uma imagem deturpada de que a Matemática é um saber atemporal e transcendente. Por exemplo, presume-se que os primeiros povos a possuírem uma fórmula para resolver equações do segundo grau foram os babilônios; ou diz-se que a descoberta dos números irracionais por um matemático pitagórico gerou uma crise na Matemática grega, que provocou até um suposto afogamento daquele que propagou a descoberta. Tratam-se de lendas ou aproximações com diversos níveis de interpretação equivocada, como procuro mostrar no livro.

A seu ver, de que forma a Matemática deve ser apresentada a alunos dos cursos de graduação e a estudantes da educação básica?

A Matemática deve ser apresentada como um saber vivo, que se conecta não apenas com problemas concretos, do cotidiano (pois muitas vezes isso não acontece), mas sim com problemas que atravessaram a história da humanidade e a construção de sua identidade.

Em seu livro, a senhora aborda os sistemas matemáticos desenvolvidos desde a Mesopotâmia até o século XIX – passando pelo Egito antigo, a Grécia clássica, a Idade Média, a Revolução Científica e os debates dos século XVIII. Que fontes a senhora utilizou?
Livros e artigos científicos, sobretudo o intenso volume de pesquisa que vem sendo publicada desde os anos 1970, em diversas línguas, e que traduz novas preocupações dos historiadores da Matemática em relação à abordagem historiográfica, em particular à metodologia no tratamento de fontes e evidências históricas. A produção matemática que teve lugar em diversos períodos da história da humanidade, se relaciona de modo muito complexo com as transformações da visão de mundo, e estas conexões devem ser analisadas caso a caso. O que proponho é fazer uma análise que mostre como a Matemática era encarada em cada época e relacionada com o contexto. Procuro mostrar, quando pertinente, os problemas matemáticos propriamente ditos, como um dado histórico. 

Essa abordagem histórica da Matemática integra a grade dos cursos de formação de docentes em Matemática? 

Muitas vezes sim, mas por falta de bibliografia adequada, os cursos acabam por não entrar em detalhes sobre a história, reproduzindo a visão dos livros mais antigos que são os únicos disponíveis em português. 

O seu trabalho, livro de história da Matemática propriamente brasileiro, é inédito no Brasil. Por quê?

É inédito porque torna disponível, com uma apresentação acessível para um público vasto, a pesquisa recente em história da Matemática, que vem se modificando profundamente desde os anos 1970 ou 1980. Até este momento, não havia um profissional historiador da Matemática. Quem fazia história da Matemática era um matemático, ou cientista, sem formação específica. A consequência disso é que não havia tanta preocupação com os documentos, os registros. Reproduziam-se afirmações sem que elas fossem fiéis às evidências sobre uma certa época, que, em muitos casos, são escassas e fragmentadas. Assim, os relatos foram construídos com base em aproximações e interpretações que reproduziam o ponto de vista daquele que estava escrevendo a história. Em tempos mais recentes, a história da Matemática vem se profissionalizando e seus praticantes têm preocupações cada vez maiores com o tratamento historiográfico, com a utilização de métodos usados por historiadores.

Em outros países, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, qual é a relevância e o espaço dado para os estudos sobre “História da Matemática”? No Brasil, qual o panorama das pesquisas acadêmicas nesse setor?

Na Europa e nos Estados Unidos a relevância e o espaço dos estudos de História da Matemática é muito maior que no Brasil. Há diferentes instituições de pesquisa, espaços de formação, além de muitas publicações e periódicos especializados. A pesquisa em História da Matemática feita no Brasil ainda é muito incipiente. Há uma comunidade numerosa trabalhando sobre a Matemática que foi produzida e ensinada no Brasil, em diversos momentos de sua história. Nesta área, há trabalhos importantes e diversos pesquisadores de qualidade, ligados à Sociedade Brasileira de História da Matemática e a diferentes programas de pós-graduação em Ensino ou mesmo História de Matemática. A Revista Brasileira de História da Matemática também tem sido um veículo importante para a consolidação desta comunidade. No entanto, a pesquisa em História da Matemática, relacionada a temas e abordagens que são tratados pela comunidade internacional, está apenas começando. Há poucos artigos de brasileiros nas revistas internacionais mais importantes na área (por exemplo Historia Mathematica e Archive for History of Exact Sciences). Há também pouco diálogo e trabalho conjunto de pesquisadores brasileiros com historiadores estrangeiros ativos na área atualmente. Recentemente, este panorama vem se transformando e espero que meu livro contribua neste processo. 

Como a senhora analisa o ensino de Matemática no Brasil? Por que essa disciplina é tão rejeitada por estudantes?

Acho que a Matemática é vista de um modo equivocado. No ensino básico é tratada, na maioria das vezes, como um saber operacional, puramente técnico. A culpa não é dos professores, pois estes devem seguir os currículos e livros didáticos e não possuem a formação adequada para mudar este quadro. Meu filho tem cinco anos e adora Matemática! Mas quando vejo alguns livros didáticos do 1º ano do ensino fundamental, que ele cursará no ano que vem, fico assustada e com medo de ele perder todo o gosto que possui pela Matemática. Os números e as contas, por exemplo, são apresentados de modo massante, como uma reprodução de procedimentos parecidos, sem nenhuma conexão com as experiências das crianças. A Matemática é rejeitada porque os programas e, portanto, os livros, em geral, não a tratam do modo mais adequado. Nos últimos anos, esta situação vem mudando bastante. Tem havido uma atenção especial dos últimos governos a estes problemas, com projetos de formação de professores que buscam transformar este panorama. Eu contribuí e continuo contribuindo com alguns deles, como o Pró-letramento e o ProfMat. A mudança que estas iniciativas vão ocasionar são lentas, mas já é louvável que o governo federal venha prestando atenção ao problema.

Uma das propostas em voga, até mesmo em função do Enem, é o trabalho de conteúdos curriculares de forma interdisciplinar. De que forma é possível aplicar essa abordagem no ensino de Matemática? O diálogo dos professores de Matemática com o de outras disciplinas é falho? Em quais pontos?

A abordagem interdisciplinar é interessante mas também é feita, muitas vezes, de modo equivocado. Não adianta dar um trabalho que envolve conhecimentos de geografia, por exemplo, se o objetivo matemático, ao final, é fazer uma conta.

Os cursos de licenciatura de Matemática estão na lista daqueles com menor procura. Por que isso acontece? A senhora teme um “apagão” de professores de Matemática?

Neste caso a resposta é simples: os professores não são valorizados e os salários são baixos. Ora, como alguém vai escolher uma área difícil, como a Matemática, com este estímulo? Este problema é mais complexo de ser resolvido, pois depende de políticas locais que são, em geral, mais eleitoreiras.

De que forma as novas tecnologias podem contribuir para tornar o ensino de Matemática mais atrativo?

Podem ajudar muito. Calculadoras, computadores e jogos eletrônicos trazem muitas oportunidades de explorar a Matemática, conectando-a com a realidade das crianças e jovens da atualidade. Além disso, essas ferramentas permitem explorar a Matemática no que ela tem de mais interessante: aquilo que não pode ser reproduzido por máquinas!







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