A prática é uma ruptura com o modelo tradicional de ensino e pode acontecer
tanto em casa quanto em espaços alternativos
Fonte: Correio da Bahia (BA)
Pietro, de 5 anos, ficou fascinado com os filhotes da gata de estimação. “Mamãe, como os bichinhos nascem?” foi a deixa para a enfermeira Larissa Moris, 34 anos, de Feira de Santana, buscar explicações na internet para o filho. “Se ele quer comer um bolo, a gente treina matemática, medidas, a diferença de peso entre a farinha e o açúcar...”.
Tratar o aprendizado com naturalidade faz parte do processo de desescolarização adotado para Pietro neste ano e que, segundo dados da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned), pode ser realidade para mais de mil famílias no Brasil. A prática é uma ruptura com o modelo tradicional de ensino e pode acontecer tanto em casa quanto em espaços alternativos.
Larissa resistiu em tirar o filho da escola. Só decidiu depois do rótulo de hiperativo que o menino recebeu das professoras. Além disso, Pietro se sentia excluído.
“Não vou dizer que nunca vou botar meu filho na escola. Vou deixar ele escolher. Quando perguntei se não ia se despedir dos amigos, ele disse que não, porque era agredido”, relata.
Com a mudança, colocou em casa um quadro negro e montou uma pequena biblioteca. Parou de trabalhar para educar Pietro. Sem a escola, reduziu os custos do menino em 50%. Para que ele tenha contato com outras crianças, frequenta praças e igrejas.
Em casa ou no colégio, Fábio Schebella, pesquisador e ex-diretor pedagógico da Aned, acha importante pensar no conteúdo ensinado. “É necessário ter cautela e equilibrar o interesse do aluno com suas necessidades. Focar apenas nos desejos pode gerar um déficit no desenvolvimento de conhecimentos essenciais”.
No mês que vem, o Ministério da Educação deve receber uma pesquisa sobre os resultados e impactos do ensino domiciliar em outros países. A ideia é regulamentar a prática que muda a rotina dos pais e questiona a educação formal.
Singular
A escola saiu da vida do paulista Gutto Thomaz quando ele fez 14 anos. Hoje, aos 19, é mágico. A decisão foi tomada junto com a mãe, Ana Thomaz, 45 anos.
Gutto achava desinteressante o modelo de educação formal e Ana, que é educadora, desenvolveu um método específico para o filho. “Você só aprende uma coisa se tiver um desejo genuíno e pessoas dispostas a compartilhar experiências”, garante.
Em casa, Gutto teve aulas de música, artes plásticas, aikido e filosofia, com diferentes professores. Assim, conheceu a mágica. Participou de congressos internacionais e conta que aprendeu mais nas viagens do que na escola.
A psicopedagoga Iris Sá não nega os problemas do ensino formal, mas não vê a opção domiciliar como solução. Ela acredita que o ideal é que os colégios mudem o formato. Como exemplo, cita a Escola da Ponte, em Portugal. “Lá, a criança tem um monitor e tira dúvidas com ele. É autodidata, tem computador, livros, tudo sem sala de aula”.
Gutto não fez amigos no colégio quando era estudante e evita comparar seu conhecimento com os colegas que estavam em sala de aula. “O método de desescolarização é único e diferente para cada um. Esse tipo de comparação só é possível na escola, onde o aprendizado é padronizado”.
Coletivo
A história de Ana e Gutto conseguiu inspirar outros pais. Aqui na Bahia, foi o exemplo decisivo para que o casal Igor Sant’Anna, 33 anos, e Carla de Miranda, 26 anos, tirassem o filho Luan, de 3 anos, da escola. “A educação se faz no dia a dia. Hoje eu acordei e Luan estava com cinco livrinhos na mão porque gosta que a gente leia para ele. Não precisamos tratar o aprendizado dele com ansiedade”, avalia Carla.
Igor é doutorando em Educação e Carla é parteira. Os dois também trabalham como palhaços da Companhia Pé na Terra. Eles conheceram Ana por intermédio de uma amiga. Na época, a educadora vinha à Bahia palestrar em Piracanga, comunidade a 30 minutos de Itacaré (397 km de Salvador) onde a educação acontece de forma livre e experimental.
Na comunidade, a uruguaia Ivana Jauregui, 33 anos, fundou a Escola Livre Inkiri, que funciona há cinco anos. A ideia nasceu com o primeiro filho, quando tinha 20 anos. Ela viajou pelo mundo em busca de um método de educação livre. “Tinha o desejo de ver as crianças mais autônomas”.
Em Piracanga, viu o desejo tomar forma na Inkiri. A escola tem vários espaços para crianças e jovens: marcenaria, cozinha, sala de leitura. Apesar de livre, tem disciplina: as crianças devem respeitar o próximo, guardar os objetos depois de usar e só correr na área externa.
Ivana entende que cada criança aprende a partir de uma curiosidade natural. “Na escola, o aprendizado está enxugado e limitado dentro de uma casinha, com um professor, um quadro e colegas com folhas em branco para responder. Mas a gente não aprende só quatro horas. Aprende o tempo inteiro. Como fica o resto do dia?”, provoca.
Novos espaços
Depois de quatro meses em Piracanga e um estágio na Escola da Ponte, o educador e psicólogo André Garcez fez parceria com a comunidade urbana Casa do Sol Dourado, em Patamares, e criou o Quintal das Crianças, espaço educativo que ainda não é escola.
“Mas temos essa missão de fundar uma escola livre, legalizada. Piracanga está legalizando agora porque foi para o mundo, mas outras escolas também buscam fazer isso”, ressalta Garcez.
Segundo André, a educação que ele e Ivana aplicam pretende mudar os paradigmas da educação formal. Abandonar as expectativas e julgamentos, pilares de boa parte dos métodos escolares tradicionais, e permitir que a criança construa o conhecimento a seu próprio ritmo.
Ercília de Paula, doutora em Educação, não é contra o ensino em diferentes espaços, desde que seja uma necessidade do aluno, como nos casos de crianças hospitalizadas. Mas acredita que eles não substituem o ambiente escolar. Segundo ela, enquanto na escola há convívio com a diferença, fora dela os pais determinam os amigos dos filhos.
Para Ivana, a Inkiri é uma inspiração. “Assim como a gente está se inspirando na Inkiri, eles se inspiraram na Escola da Ponte, em Portugal. Então, não nasceu do nada. Nasceu com uma base e a partir dela eles criaram uma própria forma, que é o que a gente está fazendo aqui”, afirma André Garcez.
Estudo sobre ensino domiciliar vai para o MEC
Uma decisão radical: tirar da escola o filho que cursava a 8ª série, por não confiar nas aulas sobre sexualidade. Esta foi uma das histórias descobertas por Edison Prado durante as pesquisas da sua tese de doutorado em Educação, pela Universidade de São Paulo (USP).
Não há estimativas precisas sobre o número de famílias que adotaram o ensino domiciliar - quando os pais decidem que os filhos serão educados em casa. A Aned estima que cerca de mil famílias adotam essa modalidade, mas a maioria mantém sigilo, por medo de restrições legais. “Existem vários modelos e métodos, cada família acaba decidindo qual o melhor”, afirma Ricardo Iene, consultor de Relações Públicas da Aned.
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), é obrigatória a matrícula de crianças na educação básica a partir dos 4 anos. Não fazer isso pode caracterizar abandono intelectual. “Os responsáveis podem sofrer multa civil e receber ordem para matricular. Nos casos mais extremos, até perder o poder familiar (a guarda e os direitos sobre a criança)”, explica Prado. Contudo, ele encontrou jurisprudências que reconhecem o direito dos pais educarem os filhos em casa - já que isso não seria um abandono intelectual.
Lei Tramita no Congresso Nacional, desde o ano passado, o Projeto de Lei 3179/12, do deputado Lincoln Portela (PR-MG). Ele propõe legalizar o ensino domiciliar. O ministro da Educação, Aloísio Mercadante, pediu um estudo sobre a aplicação do modelo em outros países, que deve ser entregue em setembro. Até lá, o deputado prefere manter o conteúdo da pesquisa em sigilo.
O próprio Lincoln foi alfabetizado em casa pela avó e só foi à escola aos 7 anos. “Desde que iniciamos a tramitação do projeto, recebemos milhares de e-mails de apoio”, revela o deputado. Atualmente, segundo dados da Aned, 63 países consideram o ensino domiciliar legal.